ES- VERDE -ANDO O "BAIRRO"

ATENDENDO AOS PEDIDOS DE ALUNOS que sempre serão muito bem -vindos, ai está o "direto-poético" de CESÁRIO VERDE em seu BAIRRO MODERNO, não custa repetir que é apenas uma visão, que sempre pode ser enriquecida por comentários e lembrar que a cidade enquanto temática é uma tendência que se mostrará muito mais clara em BAUDELAIRE, por exemplo.
N'UM BAIRRO MODERNO
(A Manuel Ribeiro)
Dez horas da manhã; os transparentes
Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estancam-se os nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua macadamizada.
Inicia-se o poema com uma das principais características da poética de Cesário: a descrição visual, positivista e responsável pelo seu apelido de POETA -PINTOR: Os vidros da casa, os jardins, com grande uso das cores que formam a impressão. Observe também o espaço urbano que vai continuar a ser descrito.
Rez-de-chaussée repousam sossegados,
Abriram-se, n'alguns, as persianas,
E d'um ou d'outro, em quartos estucados,
Ou entre a rama dos papéis pintados,
Reluzem, n'um almoço, as porcelanas.
Como é saudavel ter o seu aconchego,
E a sua vida fácil! Eu descia,
Sem muita pressa, para o meu emprego,
Aonde agora quase sempre chego
Com as tonturas d'uma apoplexia.
A descrição visual da casa burguesa continua: os quartos cheios, os papéis, as porcelanas prontas para o almoço e o fechamento que fala da vida fácil, confortável em oposição ao poeta que se dirige ao emprego e já acometido dos males da tuberculose , como por exemplo a apoplexia.
E rota, pequenina, azamafada,
Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmóreo d'uma escada,
Como um retalho de horta aglomerada,
Pousara, ajoelhando, a sua giga.
E eu, apesar do sol, examinei-a:
Pos-se de pé: ressoam-lhe os tamancos;
E abre-se-lhe o algodão azul da meia,
Se ela se curva, esguedelhada, feia,
E pendurando os seus bracinhos brancos.
Algumas características importantes além da descrição devem ser notadas nessas duas estrofes seguintes quando o eu-lírico que OBSERVA O DETALHE, vê a ambulante um exemplo claro de uma das formas de ver a mulher da cidade que tem o poeta: trabalhadora, admirável, mas feia, pobre, por vezes doente, capaz de um esforço sobre-humano. A atitude científica de EXAMINAR também deve ser observada, o que se vê é ocontrário da idealização romântica, seria a percepção do real.
Do patamar responde-lhe um criado:
«Se te convém, despacha; não converses.
Eu não dou mais.» E muito descançado,
Atira um cobre livido, oxidado,
Que vem bater nas faces d' uns alperces.
OBSERVE a relação entre as classes, apesar do enfocado ser um criado, ele representa o modo de pensar do patrão que trata com objetiva indiferença. A partir da estrofe seguinte teremos a transformação póetica, que é feita através da imaginação, mas seu processo é revelado o que mostra a tentativa de objetividade do eu-lírico, que deixa claro tratar-se de um momento devaneante com a frase :QUE VISÃO DE ARTISTA.
Subitamente,--que visão de artista!--
Se eu transformasse os simples vegetais,
Á luz do sol, o intenso colorista,
N'um ser humano que se mova e exista
Cheio de belas proporções carnais?!
Boiam aromas, fumos de cozinha;
Com o cabaz às costas, e vergando,
Sobem padeiros, claros de farinha;
E às portas, uma ou outra campainha
Toca, frenética, de vez em quando.
PERCEBA que a descrição continua, sempre chei de cores e luz; a noção de criação ligada a BELEZA, os trabalhadores ligados ao esforço físico
E eu recompunha, por anatomia,
Um novo corpo orgânico, aos bocados.
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça n'uma melancia,
E n'uns repolhos seios injetados.
As azeitonas, que nos dão o azeite,
Negras e unidas, entre verdes folhos,
São tranças d'um cabelo que se ajeite;
E os nabos--ossos nus, da cor do leite,
E os cachos d'uvas--os rosários d'olhos.
Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido, fragrante,
Como d'alguém que tudo aquilo jante,
Surge um melão, que me lembrou um ventre.
E, como um feto, enfim, que se dilate,
Vi nos legumes carnes tentadoras,
Sangue na jinja vívida, escarlate,
Bons corações pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.
A descrição é bem detalhada e sensorial – tudo chega ao poeta através da visão , do olfato. Um traço sensualista é impossível de ser negado, os túmidos, o ventre, os seios..
O sol dourava o céu. E a regateira,
Como vendera a sua fresca alface
E dera o ramo de hortelã que cheira,
Voltando-se, gritou-me prazenteira:
«Não passa mais ninguem!... Se me ajudasse?!...»
A admiração do eu-lírico pela classe trabalhadora, na qual se inclui é patente, mas considera natural seu esforço, determinado pelo meio.
Eu acerquei-me d'ela, sem desprezo;
E, pelas duas asas a quebrar,
Nós levantamos todo aquele peso
Que ao chão de pedra resistia preso,
Com um enorme esforço muscular.
«Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!»
E recebi, naquela despedida,
As forças, a alegria, a plenitude,
Que brotam d'um excesso de virtude
Ou d'uma digestão desconhecida.
NOVAMENTE a admiração que nos permite dizer que a ambulante, a vendeira aparece antiteticamente exposta: feia, mal vestida, mas cercada de uma luz de virtude, alegria, força. Quase a mesma ingenuidade que Cesário só acha possível na mulher do campo que marca a sua infância.A partir da próxima estrofe o poema encaminha-se para o fim, é um novo movimento que surge.
E enquanto sigo para o lado oposto,
E ao longe rodam umas carruagens,
A pobre afasta-se, ao calor de agosto,
Descolorida nas maçãs do rosto,
E sem quadris na saia de ramagens.
Um pequerrucho rega a trepadeira
D'uma janela azul; e, com o ralo
Do regador, parece que joeira
Ou que borrifa estrelas; e a poeira
Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.
Chegam do gigo emanações sadias,
Ouço um canário--que infantil chilrada!--
Lidam ménages entre as gelosias,
E o sol estende, pelas frontarias,
Seus raios de laranja destilada.
A VIDA volta ao “normal”, depois da “visão de artista”: o eu-lírico segue para o trabalho, descrevendo visualmente o ambiente (como é comum); O detalhe prosaico volta a fazer parte do poema – Uma criança brinca regando a planta. É exatamente a ocorrência desses detalhes prosaicos que fazem de Cesário um poeta que retrata o COTIDIANO da cidade.
E pitoresca e audaz, na sua chita,
O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
D'uma desgraça alegre que me incita,
Ela apregôa, magra, enfezadita,
As suas couves repolhudas, largas.
E como as grossas pernas d'um gigante,
Sem tronco, mas atléticas, inteiras,
Carregam sobre a pobre caminhante,
Sobre a verdura rústica, abundante,
Duas frugais abóboras carneiras.
A luz que cerca a trabalhadora reforça visão antitética: audaz x de chita; o peito erguido x desgraça (alegre, mas desgraça). O fecho abusurdamente objetivo e real quebra qualquer possível visão idealizada de uma pobre sofredora, NÃO é o que ocorre, temos uma cena, uma visão de câmera que se perde na paisagem.
1 Comments:
Ótima análise, professor! Muito obrigado!
By
Anônimo, at 9:18 PM
Postar um comentário
<< Home