...E A PROMESSA DO CADEIRA!

Ainda bem que quase sempre cumpro minhas promessas, aí está o comentário do CADEIRA,é apenas um dos possíveis e obviamente não substitui a leitura do conto, o objetivo é ajudar, qualquer dúvida, comente, a colaboração de amigos é sempre um prazer. Apesar da tentação, é melhor ler de pé...
CADEIRA
O conto CADEIRA de José Saramago é o que abre seu livro Objecto Quase, conta – guardando-se as devidas proporções de uma ficção e sua trama alegórica – a queda acidental do ditador Salazar de uma cadeira, fato ocorrido em 1968 e que foi (devido a impossibilidades cerebrais causadas pelo baque) a responsável pela Queda dele do governo e posterior morte em 1970.
A narrativa contém várias citações históricas e profundamente irônicas que mostram a posição do narrador quanto a ditadura, parece óbvia a importância de saber que Portugal também passou por uma experiência de governo ditadorial. Ela ocorreu em 1928, quando Salazar foi convidado para organizar as finanças de República Portuguesa instalada em 1910. Salazar desenvolveu uma política apoiada no exército e na Igreja, e tinha por princípio defender "a civilização cristã" dos males da época: comunismo, internacionalismo, socialismo, etc.
A organização do Estado Novo, em 1933, seguiu as tendências fascistas: defendia o corporativismo, combatia a democracia e a atividade parlamentar.
O trabalho com a linguagem – que faz do conto uma verdadeira discussão da pluralidade da significação; a alegoria e a visão focal do narrador que convida o leitor a participar do momento exato da queda devem ser considerados na leitura.
O foco inicial é a CADEIRA, seu desabamento, sua madeira acessível ao inseto que a deteriorou por gerações, a perfeição de sua queda que acaba causando a QUEDA da ditadura, ou seja, a influência do objeto nos destinos humanos, mais especificamente nos destinos de Portugal. O que faz com que consideremos a faceta histórica do conto.
A linguagem, com traços barrocos, usada por Saramago permite-se o Ludismo, as digressões quanto as sinonímias e outros recursos de estilo, que não fazem a história “andar”, mas embelezam a sua construção, tudo partindo da significação de desabamento:
A cadeira começou a cair, a ir abaixo, a tombar, mas não, no rigor do termo, a desabar. Em sentido estrito, desabar significa caírem as abas. Ora, de uma cadeira não se dirá que tem abas, e se as tiver, por exemplo, uns apoios laterais para os braços, dir-se-á que estão caindo os braços da cadeira e não que desabam.
Ainda na brincadeira do estilo o narrador aproveita para mostrar sua rejeição, que vai ser amplamente destacada, ao velho ditador:
Desabe, sim, quem nesta cadeira se sentou, ou já não sentado está, mas caíndo, como é o caso, e o estilo aproveitará da variedade das palavras, que afinal, nunca dizem o mesmo, por mais que se queira.
Logo depois discute o tipo de madeira que teria servido para confeccionar o objeto, aproveitando para criticar a dizimação expansionista, uma das bandeiras da ditadura de Salazar:
Qualquer árvore poderá ter servido, excepto o pinho por ter esgotado as virtudes nas naus da Índia e ser hoje ordinário, a cerejeira por empenar facilmente (...) Seja pois o mogno e não se fale mais no assunto. A não ser para acrescentar quanto é agradável e repousante, depois de bem sentados...
Em um segundo momento, bastante destacado, será a vez de mostrar o gênero do coleóptero que por gerações irá deteriorando a cadeira e porque não o trono, ou ainda,a ditadura. O narrador fará várias associações dele com heróis do povo, coincidentemente, mas nada é coincidência, heróis do oeste americano, como por exemplo Buck Jones. Mas a principal associação é com o “nobre povo luso”, citado até no hino do país:
Em algum lugar foi, se é consentida esta tautologia. Em algum lugar foi que o coleóptero, pertencesse ele ao gênero Hilotrupes ou Anobium ou outro (nenhum entomologista fez peritagem e identificação), se introduziu naquela ou noutra qualquer parte da cadeira, de qual parte depois viajou, roendo, comendo e evacuando, abrindo galerias ao longo dos veios mais macios, até ao sítio ideal de fractura, quantos anos depois não se sabe, ficando porém acautelado, considerando a brevidade da vida dos coleópteros, que muitas terão sido as gerações que se alimentaram deste mogno até o dia da glória, nobre povo, nação valente.
O caminho do Anobium nos veios da madeira é comparado, por isso a importância de saber que é uma representação, uma alegoria, a construção das pirâmides como túmulos dos faráos, parece, portanto pertinente, que você veja, a alusão a morte, ao fim da ditadura e a irônia com que o narrador trata o ditador que se acha um rei.
Não estranhemos portanto que esta pirâmide chamada cadeira recuse uma vez e outras vezes o seu destino funerário e pelo contrário todo o tempo da sua queda venha a ser uma forma de despedida..
A ironia do narrador também se manifesta quando usa os principios ditatorais de Salazar como a religião e a neutralidade nos conflitos para se eximir de culpa de saber da queda e não fazer nada para evitá-la:
Enquanto vemos a cadeira cair, seria impossível não estarmos nós recebendo esta graça, pois espectadores da queda nada fazemos nem vamos fazer para a deter e assistimos juntos.
Depois de todas as associações do Anobium com heróis populares que derrotam os bandidos e se aconchegam nos braços da amada, inicia-se o momento da queda, detalhadamente descrito, quadro a quadro, com direito a parada para reflexões, observe também o tratamento irônico dado ao ditador:
Também agora se sentou este homem velho que primeiro saiu de uma sala e a travessou outra, depois seguiu por um corredor que poderia ser a coxia do cinema, mas não é, é uma dependência da casa, não diremos sua, mas apenas a casa em que vive, ou está vivendo, toda ela portanto não sua, mas sua dependência.
Mais um pouco do quadro a quadro, sempre irônico apontando os erros do governante:
Vê-a de longe o velho que se aproxima e cada vez mais de perto a vê, se é que a vê (...) e esse é que é o seu erro, sempre o foi, não reparar nas cadeiras em que se senta por supor que todas são de poder (...) O velho pensa que irá descansar digamos meia hora (...) que certamente não terá paciência de ler os papéis que traz na mão.
Mais detalhes e o comportamento de neutralidade do narrador que é estimulado para que seja também do leitor:
Ainda não se recostou. O seu peso, mais um grama menos um grama (...) mais vai mexer-se, mexeu-se, recostou-se no espaldar, pendeu mesmo um quase nada para o lado frágil da cadeira. E ela parte-se (...) podemos até exercitar o sadismo de que, como o médico e o louco,temos felizmente um pouco, de uma forma, digamos já, passiva, só de quem vê e não conhece ou in limine rejeita obrigações sequer só humanitárias de acudir. A este velho não.
O trecho a seguir mostra uma comparação em que fica muito clara a postura de rejeição do narrador em relação a ditadura e seu efetivador:
Deixemos porém este pó que não é sequer enxofre, e que bem ajudaria o cenário se o fosse, ardendo com aquela chama azulada e soltando aquele seu malcheiroso ácido sulfuroso(...) Seria uma ótima maneira de o inferno aparecer assi como tal, enquanto a cadeira de belzebu se parte e cai para trás arrastando consigo satanás, asmodeu e legião.
A queda se consuma e teremos então os comentários sobre a ajuda que virá, mas principalmente a comemoração de um desejo realizado:
Cai, velho, cai. Repara que neste momento tens os pés mais altos do que a cabeça (...)A cabeça como estava previsto e cumpre as leis da física, bateu e ressaltou um pouco, digamos, uma vez que estamos perto e outras meditações tínhamos acabado de fazer, dois centímetros para cima e para o lado. Daqui para a diante, a cadeira já não importa.
As comparações com a história de Portugal continuam: a morte do Conde de Andeiro e Leonor Teles assumindo como rainha, será essa a reação da esposa? Na história real, Salazar não morre, mas fica incapacitado a ponto de nos dois anos que lhe restarão de vida acreditar ainda estar no poder. O narrador continua a usar um recurso que mostra sua onisciência e onipresença, ele está lá e o leitor na “esteira”, tem o domínio até do tempo um dos elementos da história.
Este velho não está morto. Desmaiou apenas, e nós podemos sentar-nos no chão, de pernas cruzadas, sem nenhuma pressa, porque um segundo é um século, e antes que aí cheguem os médicos e os maqueiros, e as hienas de calça de lista, chorando, uma eternidade se passará.
O corte é pequeno, quase imperceptível, mas houve ruptura nos vasos interiores, a morte já pode entrar como outro coleóptero a consumar a queda:
Uma ligeiríssima equimose, como de unha impaciente, que a raiz do cabelo quase esconde, não parece que por aqui a morte possa entrar. Em verdade, já lá está dentro. Que é isto? Iremos nós apiedar-nos do inimigo vencido?
A ajuda chega, a fisiologia do baque é descrita, o narrador assume uma posição imparcial ou pelo menos indiferente ao terminar o conto, mas o tempo que virá é o novo e não apenas uma referência ao clima.
Já se ouvem passos no corredor(...) Sobre outra superfície, a do córtice, acumula-se o sangue derramado pelos vasos que a pancada seccionou naquele ponto preciso da queda(...) É lá que nesse momento se encontra o Anobium, preparado para o segundo turno(...) Vamos até a janela. Que me diz a este mês de Setembro? Há muito tempo que não tínhamos um tempo assim.
3 Comments:
Foi-me muito proveitoso os teus comentários sobre cadeira, ler com um guia indicando as direções é muito mais fácil. Que tal agora centauros?
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Anônimo, at 8:44 AM
Esse conto é muito denso, detalista, horrivel de ser lido. Talvez exija do leitor um pouco de conhecimento sobre a ditadura portuguesa ou uma maior sensibilidade. Com muito esforço consegui compreede-lo, pelo menos penso que sim, mas foi um problema para alguém, como eu, que nasceu desprovida de capacidade intelectual.O centauros é mais gostoso, dá até pra identificar nossa animaludade humana nele. Um beijo, eu também odeio vc.
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Anônimo, at 6:31 PM
sergio, tu que saca de filosofia me diz . os lemas deterministas são aceitos hoje como verdades , nao so os positivistas toda aquel a balela thomas hobes esses caras ai . gilson-vilela@bol.com.br
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Unknown, at 7:00 PM
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